Qual o verdadeiro significado de coragem civil? O novo filme de Andrucha Waddington, finalizado após a morte prematura do diretor Breno Silveira, nos apresenta um belo exemplo ancorado numa história real tão improvável quanto poderosa: a de uma senhora de 80 anos que, da janela de casa em Copacabana no pé do morro, registrou as atividades traficantes de drogas no coração do Rio de Janeiro, e deflagrou o crime organizado, a polícia e o próprio Estado com uma câmera VHS. Vitória é um drama policial com sabor de crônica urbana e reverência à coragem anônima e à força que pode ter uma única voz em meio ao silêncio causado pelo medo.

Uma denúncia feita no VHS

Vitória se baseia em uma história real que muitos brasileiros desconhecem. Eu, moradora do sul do Brasil, confesso que não a conhecia antes de assistir ao filme. O roteiro de Paula Fiúza adapta o livro de 2006 reeditado em 2023, Dona Vitória Joana da Paz, de Fábio Gusmão, com uma abordagem direta, realista e comovente. A trama acompanha Dona Nina (representada por nosso ícone maior Fernanda Montenegro), uma aposentada comum de Copacabana que, cansada da impunidade, resolve filmar tudo que acontece bem em frente a janela de sua sala: tráfico, extorsão, conivência policial, violência explicita aliciação de menores para uso e venda de drogas.

Com a ajuda do jornalista Fabio Gusmão (Alan Rocha), o material vira denúncia, chega à imprensa e à polícia e desencadeia uma investigação real que culmina na prisão de dezenas de envolvidos. Só que o preço da coragem é alto para dona Nina — e o filme mergulha justamente nessa tensão entre moral, empatia, sobrevivência e exposição pessoal.

Fernanda Montenegro é um filme em si

Aos 95 anos, a maravilhosa Fernanda Montenegro nos entrega uma atuação contida, densa e precisa — como se cada palavra pesasse o suficiente para não desperdiçar nada e cada olhar tivesse a força de um gesto intenso. Sua Dona Nina carrega não só uma câmera, mas também a memória de um país que assiste à violência cotidiana com uma naturalidade dolorosa. A naturalidade de quem já banaliza atos atrozes por questões de sobrevivência e (relativa) sanidade mental.

A personagem real, Joana Zeferino da Paz, era negra, mas foi a própria Dona Vitória quem pediu que Fernanda Montenegro a interpretasse antes de partir para outro mundo em 2023. Mesmo assim, essa decisão não passou batida por críticos e redes sociais que questionaram a escolha de uma mulher branca para o papel.

Direção entre o realismo e a reverência

As filmagens de Dona Vitória – título original no início da produção – começaram em 2022 sob o comando do diretor Breno Silveira (Entre Irmãs, 2017) na cidade de Vicência, Pernambuco. Após se recuperar da Covid, o diretor de apenas 58 anos sofreu um infarto fulminante. Após uma pausa, as filmagens foram retomadas pelo diretor e marido de Fernanda Torres, Andrucha Waddington.

A direção de Waddington é cuidadosa, com clima de tensão crescente, ainda que sem grandes ousadias e com um ritmo mais lento – muito disso em respeito e reverência ao talento e à idade avançada de Montenegro.

FM STARS, MÚSICA, NOTÍCIA E SAUDADE