Um misto de entusiasmo e espontaneidade mesmo diante da possibilidade de reviver momentos tristes - jamais superados. Destemida dentro e fora da quadra, a potiguar de 53 anos não se esquivou ao falar da derrota mais dolorosa da carreira: o Brasil x Rússia das Olimpíadas de Atenas 2004. Mas não peçam para que ela assista ao jogo do famigerado 24 a 19. É impossível, mesmo 21 anos depois.— Foi muito frustrante. Rapaz, vou falar: foi uma das maiores dores da minha vida. Eu não consigo assistir a esse jogo. Eu sabia que éramos as melhores.
O peso da derrota recaiu sobre a revelação Mari - maior pontuadora da partida -, criticada pelos erros quando o Brasil estava a um ponto da final olímpica. Virna, que à época disputava sua terceira Olimpíada, defende a compatriota, apontada por parte da torcida e da mídia como a principal culpada por errar dois ataques nas cinco chances brasileiras de sacramentar a vitória. A Rússia virou para 28 a 26, empatou o confronto e fechou por 3 sets a 2 no tie-break ao anotar 16 a 14.
— Era uma garota que foi crucificada. Foi um crime o que fizeram com ela. O brasileiro é assim: quando ganhou é a melhor, quando perde, acabam com você. Naquela época não existia esse cancelamento do mundo virtual que tem hoje. Imagina se isso fosse hoje? A coitada não ia andar na rua — destacou Virna, citando que o abalo psicológico foi tão grande, que a seleção, favorita à medalha de ouro, sucumbiu diante de Cuba na disputa pelo bronze.
Em cerca de 1h30 de entrevista, Virna - mãe aos 18 anos de idade - falou sobre os desafios da maternidade no início da carreira, sobre as resenhas na Vila Olímpica e, claro, reviveu os atritos - e pancadas - com as jogadoras de Cuba. Lembrou, por exemplo, como chegou a ajudar as rivais com artigos de higiene, diante da situação financeira ruim das cubanas. Ou quando, com a seleção, ficou presa em Macau por conta de um terremoto e apenas com refeições locais não muito apetitosas para comer, como macacos, cobras e gafanhotos.
Virna também fez uma revelação. Ao largar as quadras, cogitou seguir a carreira de técnica. Desistiu para poder ficar mais perto da família. Mas tem um clube que a faria mudar de ideia.
- Vou falar para você, se o Flamengo chegasse para mim um dia e falasse: "Quer ser técnica, Virna?". A história muda - disse a rubro-negra, relembrando, também, a rivalidade histórica contra o Vasco nas quadras.
Ficha técnica
Nome completo: Virna Cristine Dias Piovezan
Apelido: Virnoca
Nascimento: 31/08/1971 (53 anos), Natal (RN)
Principais conquistas: Medalhista de bronze em Atlanta 1996 e Sydney 2000, Tetracampeã do Grand Prix, Melhor Jogadora do Mundo em 1999, Prata no Campeonato Mundial de 1994, Campeã Pan-Americana em Winnipeg 1999
Quem foi a Virna do passado e quem é a Virna do presente?
- A Virna jogadora sempre foi muito impetuosa, teimosa e corajosa. Eu gostava dos grandes desafios, de participar dos jogos difíceis. Era uma competição comigo e com o adversário. Essa adrenalina mexia muito comigo. E continuo assim (risos). Obviamente, não tenho esse cortisol do esporte, mas minha vida é sempre desafiadora. Eu nunca me conformo com pouco, fico em busca da melhor performance, de ser a melhor mãe, a melhor amiga, a melhor companheira. Por ser virginiana, um signo crítico, tenho esse comportamento. Cada vez que tenho uma dificuldade na vida, que atravesso um problema pessoal forte, busco aquela resiliência que o esporte me deu. O esporte é uma arte que não engana: ou você faz ou você faz. Não tem replay. Ganhando ou perdendo o jogo, você tem poucas horas para se reinventar. A vida é assim: temos grandes desafios que não podemos ficar lamentando, temos que dar um passo à frente. Esses valores eu passo aos meus filhos. Os jovens de hoje se frustram muito rápido, eles se acanham com o não. Lá em casa eu provoco, coloco todos em situações de desafio. Tem uma regra que é praticar esporte cinco vezes na semana para adquirir o sentimento de saber ganhar e perder. Nas derrotas são as maiores lições que a gente aprende.
Você era uma promessa do vôlei e foi mãe aos 18 anos de idade. Fale um pouco sobre essa época.
— A maternidade precoce foi muito desafiadora, uma virada de chave. Quando eu engravidei, saí do Rio para Natal para ficar próxima da minha família. Meu pai era muito machista, nordestino, "tem que casar, filha minha não é mãe solteira". Casei. O Vitor nasceu. O Zé Roberto Guimarães tinha assumido a seleção brasileira feminina juvenil e me convocou. Mas eu tinha feito cesárea, tinha sete camadas de pontos. Não deu para ir à seleção. Todas as minhas companheiras diziam que eu não voltaria a jogar. "A Virna é uma promessa, tinha um potencial muito grande, mas não vai mais jogar". Quando eu não pude ir à seleção, um treinador brasileiro montou um time na Calabria e me convidou. Eu não pensei duas vezes, falei "vou agora". Eu era muito insegura, uma menina de 18 anos, que não sabia fritar um ovo. Eu só sabia amamentar. Levei uma prima da minha mãe, meu marido da época e fomos morar na Itália.
— Fiquei na Itália quatro meses e não recebi salário. Meu Deus, como vou ficar aqui? Levei uma reserva, mas acabou o dinheiro. Liguei para a Fernanda Venturini, sempre generosa, e falei: "Meu dinheiro está acabando, me arruma um time no Brasil". Fui morar em Ribeirão Preto, magra, fraca... ganhei 12kg na gravidez e perdi 25kg de tanta preocupação. Tive que fazer um trabalho físico complementar. Era uma vida difícil de administrar com a maternidade. O Vitor foi criado na quadra de vôlei. Uma trocava a fralda e tirava o cocô, a outra trocava o xixi. O Miranda, massagista, era a babá do Vitor. Eu passei muitas dificuldades. Eu não vi o Vitor falando, eu não vi o Vitor andando. Reunião de escola não existia para mim.
O Vitor nasceu em 1991. Você viajava, não tinha as facilidades de comunicação de hoje em dia. Pensou em abandonar a carreira para se dedicar à maternidade?
— A seleção tinha uma demanda grande de viagens, ficávamos 45 dias no Grand Prix, na Ásia. Quando o Vitor estava com oito meses, fiquei muito tempo longe. A comunicação era por fax, demorava três dias para chegar ao Brasil, depois mais três para receber a notícia. A ligação telefônica era caríssima. Ficamos em Macau nessa viagem, teve um terremoto e suspenderam o campeonato. Ficamos trancadas dentro do hotel. A gente ia comer e só tinha macaco, cobra e gafanhoto. Começamos a passar fome. Sou cara de pau, aprendi na vida que o "não" a gente já tem. Invadi a cozinha. A mulher estava fazendo uma panelona de arroz. Falei: "Please, please". A chinesinha respondia: "No, no, no". Catei dez ovos e taquei na panela. E eu me fazendo de louca, mexe, mexe. Comemos arroz empapado com ovo. Passávamos necessidade.
— Quando eu voltei, abracei meu filho, e ele virou. "Quem é essa mulher? Não conheço ela". Meu Deus do céu, eu fiquei péssima. Demorou uns 15 minutos para ele vir no meu colo. Era pequeno, não me reconhecia. Foi uma das poucas vezes na carreira que eu pensei em parar de jogar para me dedicar à maternidade. Ele estava sentindo a minha falta a ponto de não me reconhecer. Minha mãe falou: "Filha, você lutou tanto para chegar onde chegou, vai desistir agora?". Papai era muito incentivador também. Fiquei quatro anos esperando uma oportunidade de voltar à seleção. Foi quando Bernardinho assumiu, e eu voltei. Tenho uma história linda com o Bernardo.
Por falar no Bernardinho, de que forma ele te ajudou nessa época?
— Ele sempre foi um cara muito generoso. Tem aquele jeito estouradão, exigente, mas fora da quadra é um lorde, se preocupa com tudo e com todos. A Ida e eu éramos as únicas mães daquela geração. O Bernardo fazia questão que o Vitor ficasse na concentração para eu ter uma segurança, assim, emocional. Quando o Bernardo assumiu, ele falou: "Virna, nosso sistema de jogo vai mudar. As ponteiras vão começar a recepcionar". E eu não sabia recepcionar, tinha medo. Toda vez que a bola vinha, eu me esquivava. Ele olhou para mim e falou: "Não existe a palavra medo. Existe a palavra trabalho. Vamos treinar todos os dias e você vai aprender". Com quatro meses, melhorei. Jogamos uma competição em Bremen, na Alemanha, e ganhei o prêmio de melhor recepção do mundo. Saí correndo, abracei o Bernardo e disse: "Obrigada por você acreditar que um dia eu aprenderia".
— O esporte me deu muita resiliência, força. Sou nordestina. Saí de uma cidade onde jogávamos em uma quadra de cimento, com tênis conga e joelheiras rasgadas. Quando cheguei na seleção, aos 14 anos, no infanto, as meninas todas uniformizadas... e eu aquela nordestina bichinha. Hoje a gente fala bullying, naquela época não tinha isso. Era chamada de girafona, de Olivia Palito. Eu gostava de Beto Barbosa, de Chiclete com Banana, usava maria-chiquinha. Foram muitos desafios que enfrentei para conseguir um espaço nesse cenário do vôlei. Essas experiências servem até hoje.
Fora de quadra, o Bernardinho foi muito importante nessa época da maternidade. Como ele era nos treinos e jogos?
— Eu sou muito grata ao Bernardo, somos amigos até hoje. Eu era o Cristo dele. Eu era uma jogadora que gostava da pressão, de me provocarem, tinha esse espírito agressivo, aguerrido. Vou dar um exemplo: a Leila não gostava de tomar esporro dele, ficava de bico, ficava pu**. Ele dava em mim para eu chegar nela. Era um cara muito estratégico. Fora de quadra ele é um cara maravilhoso. Eu sempre tive aquele sonho de princesa e, quando me separei do meu primeiro marido, meu mundo desmoronou. O Bernardo foi um cara sensacional, chegava mais cedo na concentração para saber se eu precisava de alguma coisa, como estava o meu filho. É um cara muito humano. Ele fazia o check-in de todas as jogadoras, abria a porta do carro para a gente. É diferenciado. Mas, dentro da quadra, é um carrasco, aquele jeito exigente.
— O Radamés Lattari que fala: "Virnoca, você era o Cristo dele". Todo esporro vinha para mim. Às vezes, eu não tinha nada a ver com a história (risos). Eu era o nome mais doce na boca dele. Uma vez estávamos no Japão há 45 dias, e eu tinha errado oito saques. Ele falou: "A próxima vez que você errar vou te mandar de volta para o Brasil". Eu me ajoelhei: "Vou errar mesmo porque eu quero ir embora (risos)". Tomei um esporro. Pior que eu errei, mas não foi de propósito. A gente começou a rir, e ele ficou louco: "Que falta de respeito!". Hoje ele é muito mais tranquilo, naquela época era mais estourado. Essa transição para a seleção masculina... lidar com homem é muito diferente.
Você guarda outra história que tenha marcado?
— Eu tenho tanta história com o Bernardo. Uma vez a gente estava indo para um Grand Prix, na Ásia, via Paris. As meninas falaram: "Virnoca, vai lá falar com chefinho, pode ser que ele escute você". Ficaríamos oito horas em Paris. A gente sempre levava uma roupa para treinar na mochila, porque ele sempre inventava um treino maluco onde estivesse, no aeroporto, no banheiro, onde desse. Quando chegamos no hotel, ele falou para descermos para treinar. Na minha cabeça teria um ginásio. A gente ficou treinando debaixo de 40 graus, em um estacionamento, durante duas horas. Era um calor que você puxava, e o ar não vinha. Mas ainda faltavam 6h para o voo. Era um quarto só para as 12 tomarem banho. Imagina a bagunça... Eu falei: "Bernardo, ninguém conhece Paris. Será que podemos alugar três táxis para dar um giro, passar na Torre Eiffel, só para dizer que conhecemos Paris?".
— Ele olhou para a minha cara, cruzou os braços e falou: "Não estou entendendo. A gente nem começou a viagem e vocês estão pensando em turismo? Vocês estão loucas? Vamos jogar. Se a gente ganhar, eu prometo que pago para quem quiser ficar em Paris na volta". Dito e feito. Ganhamos o Grand Prix, mas estávamos há 40 dias fora de casa. "Promessa é dívida. Vou pagar para quem quiser ficar em Paris". Você acha que alguém queria? Morrendo de saudade de família, de namorado, de amante, de noivo. Óbvio que não! Ele era um cara que sempre tirava a gente da zona de conforto. "Sem vitimismo, vamos embora, vamos nos reinventar". É um cara que está sempre te provocando, mas te colocando para cima. Eu tenho muita gratidão por ele. Muita mesmo.
E o Zé Roberto Guimarães?
— Quando tive essa fase difícil que o Bernardo me ajudou, o Zé era meu técnico no clube, em Osasco. O Zé foi excepcional. Eu chorava, acabava o treino, e ele me levava para andar a cavalo, me levava para a casa dele no fim de semana. Sabe aquele cara humano? Eu falava: "Zé, nós somos mulheres, é o dia da mulher". Ele chegava com rosas pra gente. Ele era todo preocupado com o ciclo menstrual de todo mundo. Aquilo altera muito. Em véspera de competição, sem menstruar, eu ficava inchada, mal humorada, de TPM. O Bernardo e o Zé são muito diferentes em relação a comportamento de treinador, mas como pessoa, os dois são muito humanos. O Zé é uma pessoa extraordinária, se preocupa com a família. Muitas vezes, no aquecimento, ele sentia alguma jogadora diferente, ele ia com o jeitinho dele, acolhia, em dois minutos descobria o problema.
Como você definiria a Vila Olímpica?
— A Vila Olímpica é um sonho! Você se depara com 10 mil atletas do mundo inteiro, os mais sarados, lindos e saudáveis do mundo. É um cortisol da po***. As brasileiras fazem muito sucesso. Eu acho que pela nossa sensualidade, os uniformes, na nossa época mais ainda, eram uma sunga. As sungas das chinesas eram "melita", a nossa era um biquíni. Os americanos e os chineses andam completamente focados, de fone de ouvido, como se estivessem com aquele cabresto de cavalo. Eles não olham para o lado, são altamente disciplinados. Tem outros países que vão para o oba-oba. Eu tive a infelicidade de ir casada (risos), porque era muito homem bonito. As meninas, no final, davam uma "pegadinha" (risos). No começo, não. O combinado era andar sempre em trio: eu, a Leila e a Fofão, da geração 2000, éramos casadas, e tínhamos nossos trios. Eu fiquei com o mais difícil: Walewska, Elisângela e Érica. Pense no trabalho que as três me davam? Era do peru! A gente dormia no térreo do prédio, mas eu não durmo à tarde. Normalmente, as pessoas treinam, almoçam, descansam à tarde e jogam à noite. Eu não gostava de dormir, porque eu ficava mole, preguiçosa. Eu ficava agitada. Quando chegava à noite, eu capotava. As meninas aprontavam, fui descobrir agora, depois de anos. Os meninos da natação paqueravam elas e, de madrugada, tinham umas puladas de janela. Ainda bem que não afetou o rendimento do time.
— O Guga Kuerten, na primeira Olimpíada dele, ficava tocando viola na nossa casinha. Dava 10h da noite, o Bernardo falava: "Guga, tem que ir embora". Tinha um cara chamado Jesus, que era perfeito, um Jesus Cristo. Ele era espanhol, do remo. Ele se apaixonou pela Leila. Todo os dias ele passava na porta do nosso apartamentinho e levava um buquê de flores para ela. Ela era linda, maravilhosa, mas casada. As outras falavam: "Deus não dá asa à cobra, podia ser pra mim (risos)". São muitas experiências legais. Óbvio que, quando acaba, tem aquelas festas, aí rola. Não tem como, é hormônio, muita gente bonita, saudável, os caras com o hormônio à flor da pele, a mulherada... E qual é o problema? Os meninos do vôlei, que não vou contar quem, eram apaixonados pelas meninas da ginástica. Nosso quarto era do lado do delas. Eu ficava na janela, era a candinha, sabia tudo que acontecia. Eles davam um perdido, iam na casa das meninas da ginástica. E no dia seguinte eu falava: "Ó, eu vi, hein". É uma pena que fui casada às três Olimpíadas, se eu soubesse que era tão bom, pelo menos uma eu teria ido solteira (risos). É bem gostoso, um clima muito legal.
Havia uma hipersexualização na época? A questão do uniforme, como você citou, o rótulo de musas...
— A gente não tinha noção da dimensão daquilo. O Bernardo se preocupava muito. Naquela época foi o auge da musas, Ana Paula, Leila, Fernanda Venturi. Elas, realmente, eram maravilhosas. A gente não tinha noção da repercussão e da dimensão que aquilo representava. O Bernardo nos blindava. Um dia começou aquele assédio muito grande com a Ana Paula, revistas, trabalhos. E ele, muito preocupado, falava assim: "Quem quiser ser musa, que fique sentada do meu lado no banco, para eu ficar admirando a beleza. Ali, na quadra, não". A nossa geração era de mulheres muito lindas, como a Ana Flávia, a Ida e a Hilma.
Conheceu alguma estrela do esporte lá?
— Olimpíada é Olimpíada. Em Atlanta 1996, quando entrei no refeitório lotado, eu falei: "Meu Deus, que coisa é essa?. Tem comida do mundo inteiro". De repente, lá no fundo, é o Michael Jordan (Nota da reportagem: o astro, que retornara ao basquete no ano anterior, após uma tentativa frustrada no beisebol, estava nos Jogos a convite de um patrocinador, sem fazer parte da equipe americana que ganharia o ouro). O time dos Estados Unidos estava lá, é uma NBA aquilo. Eu falei: "Vou lá". As meninas falaram que eu estava louca. Era aquela máquina de filme, você não sabia como a foto sairia. Eles estavam se servindo, pegando uma massa italiana, uma salada... Eu pedi: "Could you take a picture with me (Você pode tirar uma foto comigo?)?". What (O quê?)? Ele não entendeu meu inglês nordestino. "Picture, picture". Ele, educadamente, botou a bandeja e tirou a foto comigo. Depois que eu fiz isso, o refeitório inteiro foi atrás desses caras. Eles não conseguiram comer, tiveram que tirá-los da Vila Olímpica, ficaram em um hotel. Todo mundo estava com aquele receio, mas como a louca aqui foi falar com eles... São histórias maravilhosas.
Como foi estrear em Jogos Olímpicos, em Atlanta 1996?
— Você chega para competir e sua companheira, Hilma, no auge da carreira, quebra o pé. Quem tem que substituir? Virna. Uma mega responsabilidade, é o mundo te assistindo. O Brasil era uma das melhores seleções do mundo. É uma cobrança. Estreei contra o Quênia, um dos piores times do mundo. Elas não sabiam sacar. Eu me tremia de nervoso. Ainda bem que era um jogo fácil, porque existe essa adrenalina. Depois da terceira cortada, sai aquela tensão. Olimpíada é Olimpíada. A Copa do Mundo de futebol é a nossa Olimpíada. É um sonho. Fui privilegiada. Joguei três Olimpíadas e fui a três como comentarista. Uma delas foi ao lado do Luciano do Valle e, quando as meninas ganham o ouro, ele começou a chorar. Eu o abandonei na transmissão e invadi a quadra. Eu não podia fazer isso, estava ali como comentarista. É tanta emoção! Não sou campeã olímpica, mas sou bicampeã olímpica como comentarista. Vivi todos os lados das Olimpíadas. É um clima maravilhoso. Em Paris 2024 fui como embaixadora.
— Tive a honra de ver a Rebeca ganhar da Simone Biles. A Biles é um fenômeno. Quando eu vi aquela mulher ganhar o ouro no primeiro dia, pela TV, eu pensei: "Para a Rebeca ganhar da Biles, ela tem que tropeçar". Ela é uma pluma. No segundo dia, eu comprei. Meu marido ficou louco, porque paguei uma fortuna no ingresso. Eu queria assistir no melhor lugar, a prova de ginástica é a coisa mais linda de uma Olimpíada. Eu assisti atrás da avó, do avô e do noivo da Biles. Foi uma emoção ver a Rebeca ganhar, a gente chorava. Ela é um fenômeno. A história de vida, não tinha dinheiro, operou o joelho... como o esporte é transformador. Fiz questão que meus filhos vivenciassem isso. Eu não sei quando vou voltar a uma Olimpíada. Foi R$ 30 mil por quatro ingressos. Eu me sacrifiquei porque não sei quando vou voltar. É muito mágico.
Atlanta 1996 ficou marcada pela primeira medalha olímpica do vôlei feminino do Brasil, mas também pela confusão com as cubanas.
— Nossa... Essa Olimpíada de Atlanta 1996 foi muito especial. Em primeiro lugar, pelas dificuldades que enfrentamos. Ganhamos de Cuba de 3 a 0 na chave e, teoricamente, não cruzaríamos com elas, mas elas perderam para a Rússia e a enfrentamos na semifinal. Foi um jogo muito difícil, elas xingavam, provocavam. Hoje eu entendo por que elas faziam isso, era sobrevivência. O Brasil começou a tirar a comida delas. Tudo que elas ganhavam, 90% ia para o governo, 10% para elas. Elas eram gratas ao presidente Fidel Castro, ele ajudava o esporte cubano. Mas, o segundo ou terceiro lugar, era metade, da metade, da metade do prêmio. Hoje sou amiga da Mireya Luis, conversamos sobre isso. Quando perdemos para Cuba, que teve aquela briga no vestiário, foi uma loucura. Foi horrível, a gente não conseguiu dormir. A Filó estava com um galo enorme na cabeça, pegaram a muleta da Hilma para bater nas cubanas e bateram na cabeça da Filó. Foi uma noite horrorosa, ninguém dormiu.
Como viraram a chave para a disputa da medalha de bronze?
— No dia seguinte, indo pegar o ônibus para ir para o jogo, cruzei com meu conterrâneo Oscar Schmidt. Eu estava com a Ana Paula. "Que cara é essa meninas?". Poxa, tomamos porrada literalmente, na bola e na vida real (risos). Aquele briga havia sido por causa da Ana Paula. Ele falou: "Garotas, levantem a cabeça. Eu trocaria todas as medalhas da minha vida por uma medalha olímpica. Vocês não têm noção do que significa uma medalha olímpica. Nunca uma mulher no esporte brasileiro ganhou uma medalha, vocês podem ser as primeiras". Ele falou meu nome, eu nem imaginava que ele me conhecesse. O Oscar era um mito. Passou um filme na minha cabeça, essa mensagem não foi por acaso. Quando chegamos no ginásio, o Bernardinho nos empoderou na preleção, aí falamos da mensagem do Oscar. Aquilo deu um brilho no olhar de cada uma, uma coisa muito forte. O Oscar disse: "Eu não posso me imaginar num pódio, porque o basquete dos Estados Unidos e dos outros países é muito forte. É muito difícil". A gente ganhou a medalha e, quando chegamos no Brasil, não tínhamos noção da repercussão. Parecia que tínhamos ganhado o ouro. Andávamos de carro de bombeiro.
E quando as coisas foram mudando a ponto de o Brasil começar a vencê-las?
— A gente tomava muita porrada de Cuba. O Bernardo e o Zé Inácio, nosso preparador físico, eram visionários. Eles marcaram amistosos em Cuba para ver o que elas estavam fazendo. O Zé ia para a musculação dentro do ginásio ver as cubanas. Elas faziam levantamento olímpico. O crossfit, que hoje é moda, elas já faziam em 1995. Quando voltamos ao Brasil, o Bernardo mudou completamente a nossa parte física. A gente fazia elástico, pesinho pena. Meu amor, começamos a colocar aquelas placonas de musculação. Fomos ficando duras. A gente ia atacar e parecia que a bola não saía direito, os braços travados. Começamos a perceber que melhorou nossa força, nossa impulsão. A gente aprendeu a ganhar de Cuba perdendo de Cuba. Fomos entender o que elas faziam. Nessa época, levávamos peças íntimas, desodorante, sabonete, porque elas passavam necessidade e comprávamos charutos delas para ajudar. A Mireya ama samba e música baiana. Eu levava para ela fita de escola de samba, do Beto Barbosa, do Chiclete com Banana, do Durval Lélys, da Daniela Mercury, do Luiz Caldas. Criamos um vínculo.
E depois azedou...
— E aí veio a rivalidade, ficamos sem nos falar. Chegávamos escoltadas pela polícia nos ginásios, cada seleção de um lado. Não ficávamos no mesmo andar dos hotéis. Utilizávamos o restaurante em horários distintos. Era uma guerra, era pau mesmo. Depois de 1996, quando vieram os Grand Prix, virou uma inimizade. Até 2000 era uma mega rivalidade. E aí Cuba e o Brasil foram se renovando. A nova geração não vivenciou isso. Todos os países queriam contratar as cubanas e, na época, a Itália era o melhor do mundo. O presidente Fidel dizia que as 12 só podiam ir para o mesmo país. Elas foram para a Itália, a maioria casou com europeu e não voltou mais para Cuba. O vôlei feminino de Cuba não joga mais Olimpíada, mas foi a nossa grande referência. Quando eu virei comentarista, a Mireya era chefe de missão de Cuba. Nós nos encontramos na Vila, trocamos telefones e voltamos a ter um vínculo. Eu a convidei para o Carnaval no Rio, a levei na Sapucaí, ela pirou. Ela não imaginava aquilo. Mantivemos o contato, ela virou comentarista nas Olimpíadas do Rio.
— No ano passado, fizemos um talk-show em 12 cidades no interior de São Paulo, contamos as confusões, a rivalidade e ficamos muito amigas. Ela passou 10 dias na minha casa. Estamos montando uma empresa de atletas, ainda estamos desenvolvendo, não posso contar qual é o foco. Ela trabalha na Federação Internacional. Estamos sempre juntas, ela mora na República Dominicana. A gente se fala a cada 15 dias. É uma mulher humilde, batalhadora. Ela tem uma história que, sempre que ela conta, eu choro. Ela foi mãe aos 14 anos, nem sabia que estava grávida. Quando ela foi mãe, a seleção precisava muito dela. Ela deixou a criança com 10 dias de nascimento e foi embora jogar com a seleção. Ficou um tempão fora de casa, quando voltou a filha estava grande. Às vezes ,a gente não tem noção das dificuldades que um atleta passa.
Qual era o sentimento que você tinha em relação à Mireya na época da rivalidade?
— Ah, posso falar um palavrão? Ela era f***. Ela, a (Magaly) Carbajal e aquela (Regla) Torres... Pense em três catimbentas? A Mireya atacava: "Salta filha da putana". Ela atacava onde queria. Bloquear a Mireya era muito difícil, era um fenômeno. Era ágil, habilidosa. A gente tinha muita raiva dela. Até hoje eu não vi nenhuma jogadora do nível daquela mulher. Para mim, está eternizada. Tem a Boscovic, jogadoras muito boas, mulheres enormes, mas fazer o que ela fazia com aquele tamanho e facilidade? Ela bloqueava, sacava, defendia e passava sem fazer esforço. Nesses dias, brincando no Brasil, ela me irritou. É mais velha que eu, não treina mais, e eu toda enferrujada, dura. Ela com o maior controle. Um fenômeno.
Como vocês respondiam às provocações na quadra?
— A Márcia Fu, a Ana Moser e eu éramos mais briguentas. Tinha a turma da calmaria. Fuzinha ia para cima, não engolia sapo, não. "Você me respeita, filha de putana é você". Era pau. A Mireya me contou tudo, porque quando começamos a fazer frente, elas ficaram preocupadas, não só pelo financeiro, mas porque queriam ser melhores que as brasileiras. O treinador delas, Eugenio (George Lafita), colocava titulares x reservas nos treinos para uma provocar a outra. Para, quando encontrar a gente, fazer o mesmo. Somos latinas, o sangue corre pela veia. Uns são mais explosivos, outros menos, mas tem essa competitividade. Era uma guerra. Nosso voleibol brasileiro deve muito a Cuba. Ali foi uma escola para a gente.
O que os brasileiros falam com você sobre as cubanas quando te encontram na rua?
— Aquelas "catimbentas", metidas, chatas... As pessoas criaram um rancor, uma raiva delas, e não é para menos. O que elas fizeram foi muito grave. E elas não estavam nem aí, eram treinadas para nos desestabilizar emocionalmente. Tudo era estratégia. Hoje a gente sabe de tudo isso, mas naquela época era guerra mesmo.
Depois disso, veio um grande trauma, em Atenas 2004. O Brasil vencia a Rússia por 24 a 19 e ficou a um ponto da final olímpica, que não veio. Quais as suas lembranças desse dia?
— A gente entrou naquela Olimpíada com a convicção de que éramos as melhores. Fato. Não tinha nenhuma seleção ali melhor que a do Brasil. Nas outras, a gente sabia que lutaria pelo terceiro lugar. Aquele jogo contra a Rússia foi muito louco, porque quando aconteceu o 24 a 19, que deu aquele barata-voa, que ninguém virava bola, o Zé Roberto pediu tempo. Sabe quando você percebe que ninguém o ouviu? Todo mundo estava tão baratinado que quis resolver por conta própria. Não teve estratégia. Eu estava na saída, fui atacar uma bola, que eu fazia com facilidade, para ela bater (na adversária) e sair. Ela bateu no meu ombro e, como uma das jogadoras experientes do grupo, eu levei a culpa para mim para sempre. Eu não consigo assistir àquele 24 a 19. Aquilo me dói. Aquela Olimpíada eu não consigo admitir ter pedido. Analisando depois, a gente não conseguiu pensar como grupo, cada uma quis resolver sozinha e, em esporte coletivo, não é assim. Emocionalmente, algumas foram se perdendo, perdendo o equilíbrio. O esporte é uma arte que não engana. Quatro anos depois, como comentarista, a vitória do Brasil me aliviou um pouco. Essa derrota foi dura.
Como ficou a sua cabeça depois da derrota?
— Depois da Olimpíada, eu tinha o maior contrato do vôlei feminino no mundo para jogar na Itália. Cheguei lá e me machuquei. Minha cabeça estava muito mal, foi uma deprê mesmo. A sensação era de perder um ente querido, uma coisa profunda essa dor. Fiquei quatro meses tentando me recuperar de uma lesão no joelho e não conseguia. Ficou muito claro para mim que era por causa da minha cabeça. Eu tinha mais de um ano de contrato na Itália e pedi para rescindir para ganhar metade, da metade, da metade do dinheiro. Eu precisava voltar ao Brasil para me reconectar com meus valores, minha família.
Como isso é sentido por quem está dentro da quadra? Porque, antes mesmo do empate em 24 a 24 acontecer, um time vai ficando abalado, e o outro vai acreditando no impossível...
Ficha técnica
Nome completo: Virna Cristine Dias Piovezan
Apelido: Virnoca
Nascimento: 31/08/1971 (53 anos), Natal (RN)
Principais conquistas: Medalhista de bronze em Atlanta 1996 e Sydney 2000, Tetracampeã do Grand Prix, Melhor Jogadora do Mundo em 1999, Prata no Campeonato Mundial de 1994, Campeã Pan-Americana em Winnipeg 1999
Quem foi a Virna do passado e quem é a Virna do presente?
- A Virna jogadora sempre foi muito impetuosa, teimosa e corajosa. Eu gostava dos grandes desafios, de participar dos jogos difíceis. Era uma competição comigo e com o adversário. Essa adrenalina mexia muito comigo. E continuo assim (risos). Obviamente, não tenho esse cortisol do esporte, mas minha vida é sempre desafiadora. Eu nunca me conformo com pouco, fico em busca da melhor performance, de ser a melhor mãe, a melhor amiga, a melhor companheira. Por ser virginiana, um signo crítico, tenho esse comportamento. Cada vez que tenho uma dificuldade na vida, que atravesso um problema pessoal forte, busco aquela resiliência que o esporte me deu. O esporte é uma arte que não engana: ou você faz ou você faz. Não tem replay. Ganhando ou perdendo o jogo, você tem poucas horas para se reinventar. A vida é assim: temos grandes desafios que não podemos ficar lamentando, temos que dar um passo à frente. Esses valores eu passo aos meus filhos. Os jovens de hoje se frustram muito rápido, eles se acanham com o não. Lá em casa eu provoco, coloco todos em situações de desafio. Tem uma regra que é praticar esporte cinco vezes na semana para adquirir o sentimento de saber ganhar e perder. Nas derrotas são as maiores lições que a gente aprende.
Você era uma promessa do vôlei e foi mãe aos 18 anos de idade. Fale um pouco sobre essa época.
— A maternidade precoce foi muito desafiadora, uma virada de chave. Quando eu engravidei, saí do Rio para Natal para ficar próxima da minha família. Meu pai era muito machista, nordestino, "tem que casar, filha minha não é mãe solteira". Casei. O Vitor nasceu. O Zé Roberto Guimarães tinha assumido a seleção brasileira feminina juvenil e me convocou. Mas eu tinha feito cesárea, tinha sete camadas de pontos. Não deu para ir à seleção. Todas as minhas companheiras diziam que eu não voltaria a jogar. "A Virna é uma promessa, tinha um potencial muito grande, mas não vai mais jogar". Quando eu não pude ir à seleção, um treinador brasileiro montou um time na Calabria e me convidou. Eu não pensei duas vezes, falei "vou agora". Eu era muito insegura, uma menina de 18 anos, que não sabia fritar um ovo. Eu só sabia amamentar. Levei uma prima da minha mãe, meu marido da época e fomos morar na Itália.
— Fiquei na Itália quatro meses e não recebi salário. Meu Deus, como vou ficar aqui? Levei uma reserva, mas acabou o dinheiro. Liguei para a Fernanda Venturini, sempre generosa, e falei: "Meu dinheiro está acabando, me arruma um time no Brasil". Fui morar em Ribeirão Preto, magra, fraca... ganhei 12kg na gravidez e perdi 25kg de tanta preocupação. Tive que fazer um trabalho físico complementar. Era uma vida difícil de administrar com a maternidade. O Vitor foi criado na quadra de vôlei. Uma trocava a fralda e tirava o cocô, a outra trocava o xixi. O Miranda, massagista, era a babá do Vitor. Eu passei muitas dificuldades. Eu não vi o Vitor falando, eu não vi o Vitor andando. Reunião de escola não existia para mim.
O Vitor nasceu em 1991. Você viajava, não tinha as facilidades de comunicação de hoje em dia. Pensou em abandonar a carreira para se dedicar à maternidade?
— A seleção tinha uma demanda grande de viagens, ficávamos 45 dias no Grand Prix, na Ásia. Quando o Vitor estava com oito meses, fiquei muito tempo longe. A comunicação era por fax, demorava três dias para chegar ao Brasil, depois mais três para receber a notícia. A ligação telefônica era caríssima. Ficamos em Macau nessa viagem, teve um terremoto e suspenderam o campeonato. Ficamos trancadas dentro do hotel. A gente ia comer e só tinha macaco, cobra e gafanhoto. Começamos a passar fome. Sou cara de pau, aprendi na vida que o "não" a gente já tem. Invadi a cozinha. A mulher estava fazendo uma panelona de arroz. Falei: "Please, please". A chinesinha respondia: "No, no, no". Catei dez ovos e taquei na panela. E eu me fazendo de louca, mexe, mexe. Comemos arroz empapado com ovo. Passávamos necessidade.
— Quando eu voltei, abracei meu filho, e ele virou. "Quem é essa mulher? Não conheço ela". Meu Deus do céu, eu fiquei péssima. Demorou uns 15 minutos para ele vir no meu colo. Era pequeno, não me reconhecia. Foi uma das poucas vezes na carreira que eu pensei em parar de jogar para me dedicar à maternidade. Ele estava sentindo a minha falta a ponto de não me reconhecer. Minha mãe falou: "Filha, você lutou tanto para chegar onde chegou, vai desistir agora?". Papai era muito incentivador também. Fiquei quatro anos esperando uma oportunidade de voltar à seleção. Foi quando Bernardinho assumiu, e eu voltei. Tenho uma história linda com o Bernardo.
Por falar no Bernardinho, de que forma ele te ajudou nessa época?
— Ele sempre foi um cara muito generoso. Tem aquele jeito estouradão, exigente, mas fora da quadra é um lorde, se preocupa com tudo e com todos. A Ida e eu éramos as únicas mães daquela geração. O Bernardo fazia questão que o Vitor ficasse na concentração para eu ter uma segurança, assim, emocional. Quando o Bernardo assumiu, ele falou: "Virna, nosso sistema de jogo vai mudar. As ponteiras vão começar a recepcionar". E eu não sabia recepcionar, tinha medo. Toda vez que a bola vinha, eu me esquivava. Ele olhou para mim e falou: "Não existe a palavra medo. Existe a palavra trabalho. Vamos treinar todos os dias e você vai aprender". Com quatro meses, melhorei. Jogamos uma competição em Bremen, na Alemanha, e ganhei o prêmio de melhor recepção do mundo. Saí correndo, abracei o Bernardo e disse: "Obrigada por você acreditar que um dia eu aprenderia".
— O esporte me deu muita resiliência, força. Sou nordestina. Saí de uma cidade onde jogávamos em uma quadra de cimento, com tênis conga e joelheiras rasgadas. Quando cheguei na seleção, aos 14 anos, no infanto, as meninas todas uniformizadas... e eu aquela nordestina bichinha. Hoje a gente fala bullying, naquela época não tinha isso. Era chamada de girafona, de Olivia Palito. Eu gostava de Beto Barbosa, de Chiclete com Banana, usava maria-chiquinha. Foram muitos desafios que enfrentei para conseguir um espaço nesse cenário do vôlei. Essas experiências servem até hoje.
Fora de quadra, o Bernardinho foi muito importante nessa época da maternidade. Como ele era nos treinos e jogos?
— Eu sou muito grata ao Bernardo, somos amigos até hoje. Eu era o Cristo dele. Eu era uma jogadora que gostava da pressão, de me provocarem, tinha esse espírito agressivo, aguerrido. Vou dar um exemplo: a Leila não gostava de tomar esporro dele, ficava de bico, ficava pu**. Ele dava em mim para eu chegar nela. Era um cara muito estratégico. Fora de quadra ele é um cara maravilhoso. Eu sempre tive aquele sonho de princesa e, quando me separei do meu primeiro marido, meu mundo desmoronou. O Bernardo foi um cara sensacional, chegava mais cedo na concentração para saber se eu precisava de alguma coisa, como estava o meu filho. É um cara muito humano. Ele fazia o check-in de todas as jogadoras, abria a porta do carro para a gente. É diferenciado. Mas, dentro da quadra, é um carrasco, aquele jeito exigente.
— O Radamés Lattari que fala: "Virnoca, você era o Cristo dele". Todo esporro vinha para mim. Às vezes, eu não tinha nada a ver com a história (risos). Eu era o nome mais doce na boca dele. Uma vez estávamos no Japão há 45 dias, e eu tinha errado oito saques. Ele falou: "A próxima vez que você errar vou te mandar de volta para o Brasil". Eu me ajoelhei: "Vou errar mesmo porque eu quero ir embora (risos)". Tomei um esporro. Pior que eu errei, mas não foi de propósito. A gente começou a rir, e ele ficou louco: "Que falta de respeito!". Hoje ele é muito mais tranquilo, naquela época era mais estourado. Essa transição para a seleção masculina... lidar com homem é muito diferente.
Você guarda outra história que tenha marcado?
— Eu tenho tanta história com o Bernardo. Uma vez a gente estava indo para um Grand Prix, na Ásia, via Paris. As meninas falaram: "Virnoca, vai lá falar com chefinho, pode ser que ele escute você". Ficaríamos oito horas em Paris. A gente sempre levava uma roupa para treinar na mochila, porque ele sempre inventava um treino maluco onde estivesse, no aeroporto, no banheiro, onde desse. Quando chegamos no hotel, ele falou para descermos para treinar. Na minha cabeça teria um ginásio. A gente ficou treinando debaixo de 40 graus, em um estacionamento, durante duas horas. Era um calor que você puxava, e o ar não vinha. Mas ainda faltavam 6h para o voo. Era um quarto só para as 12 tomarem banho. Imagina a bagunça... Eu falei: "Bernardo, ninguém conhece Paris. Será que podemos alugar três táxis para dar um giro, passar na Torre Eiffel, só para dizer que conhecemos Paris?".
— Ele olhou para a minha cara, cruzou os braços e falou: "Não estou entendendo. A gente nem começou a viagem e vocês estão pensando em turismo? Vocês estão loucas? Vamos jogar. Se a gente ganhar, eu prometo que pago para quem quiser ficar em Paris na volta". Dito e feito. Ganhamos o Grand Prix, mas estávamos há 40 dias fora de casa. "Promessa é dívida. Vou pagar para quem quiser ficar em Paris". Você acha que alguém queria? Morrendo de saudade de família, de namorado, de amante, de noivo. Óbvio que não! Ele era um cara que sempre tirava a gente da zona de conforto. "Sem vitimismo, vamos embora, vamos nos reinventar". É um cara que está sempre te provocando, mas te colocando para cima. Eu tenho muita gratidão por ele. Muita mesmo.
E o Zé Roberto Guimarães?
— Quando tive essa fase difícil que o Bernardo me ajudou, o Zé era meu técnico no clube, em Osasco. O Zé foi excepcional. Eu chorava, acabava o treino, e ele me levava para andar a cavalo, me levava para a casa dele no fim de semana. Sabe aquele cara humano? Eu falava: "Zé, nós somos mulheres, é o dia da mulher". Ele chegava com rosas pra gente. Ele era todo preocupado com o ciclo menstrual de todo mundo. Aquilo altera muito. Em véspera de competição, sem menstruar, eu ficava inchada, mal humorada, de TPM. O Bernardo e o Zé são muito diferentes em relação a comportamento de treinador, mas como pessoa, os dois são muito humanos. O Zé é uma pessoa extraordinária, se preocupa com a família. Muitas vezes, no aquecimento, ele sentia alguma jogadora diferente, ele ia com o jeitinho dele, acolhia, em dois minutos descobria o problema.
Como você definiria a Vila Olímpica?
— A Vila Olímpica é um sonho! Você se depara com 10 mil atletas do mundo inteiro, os mais sarados, lindos e saudáveis do mundo. É um cortisol da po***. As brasileiras fazem muito sucesso. Eu acho que pela nossa sensualidade, os uniformes, na nossa época mais ainda, eram uma sunga. As sungas das chinesas eram "melita", a nossa era um biquíni. Os americanos e os chineses andam completamente focados, de fone de ouvido, como se estivessem com aquele cabresto de cavalo. Eles não olham para o lado, são altamente disciplinados. Tem outros países que vão para o oba-oba. Eu tive a infelicidade de ir casada (risos), porque era muito homem bonito. As meninas, no final, davam uma "pegadinha" (risos). No começo, não. O combinado era andar sempre em trio: eu, a Leila e a Fofão, da geração 2000, éramos casadas, e tínhamos nossos trios. Eu fiquei com o mais difícil: Walewska, Elisângela e Érica. Pense no trabalho que as três me davam? Era do peru! A gente dormia no térreo do prédio, mas eu não durmo à tarde. Normalmente, as pessoas treinam, almoçam, descansam à tarde e jogam à noite. Eu não gostava de dormir, porque eu ficava mole, preguiçosa. Eu ficava agitada. Quando chegava à noite, eu capotava. As meninas aprontavam, fui descobrir agora, depois de anos. Os meninos da natação paqueravam elas e, de madrugada, tinham umas puladas de janela. Ainda bem que não afetou o rendimento do time.
— O Guga Kuerten, na primeira Olimpíada dele, ficava tocando viola na nossa casinha. Dava 10h da noite, o Bernardo falava: "Guga, tem que ir embora". Tinha um cara chamado Jesus, que era perfeito, um Jesus Cristo. Ele era espanhol, do remo. Ele se apaixonou pela Leila. Todo os dias ele passava na porta do nosso apartamentinho e levava um buquê de flores para ela. Ela era linda, maravilhosa, mas casada. As outras falavam: "Deus não dá asa à cobra, podia ser pra mim (risos)". São muitas experiências legais. Óbvio que, quando acaba, tem aquelas festas, aí rola. Não tem como, é hormônio, muita gente bonita, saudável, os caras com o hormônio à flor da pele, a mulherada... E qual é o problema? Os meninos do vôlei, que não vou contar quem, eram apaixonados pelas meninas da ginástica. Nosso quarto era do lado do delas. Eu ficava na janela, era a candinha, sabia tudo que acontecia. Eles davam um perdido, iam na casa das meninas da ginástica. E no dia seguinte eu falava: "Ó, eu vi, hein". É uma pena que fui casada às três Olimpíadas, se eu soubesse que era tão bom, pelo menos uma eu teria ido solteira (risos). É bem gostoso, um clima muito legal.
Havia uma hipersexualização na época? A questão do uniforme, como você citou, o rótulo de musas...
— A gente não tinha noção da dimensão daquilo. O Bernardo se preocupava muito. Naquela época foi o auge da musas, Ana Paula, Leila, Fernanda Venturi. Elas, realmente, eram maravilhosas. A gente não tinha noção da repercussão e da dimensão que aquilo representava. O Bernardo nos blindava. Um dia começou aquele assédio muito grande com a Ana Paula, revistas, trabalhos. E ele, muito preocupado, falava assim: "Quem quiser ser musa, que fique sentada do meu lado no banco, para eu ficar admirando a beleza. Ali, na quadra, não". A nossa geração era de mulheres muito lindas, como a Ana Flávia, a Ida e a Hilma.
Conheceu alguma estrela do esporte lá?
— Olimpíada é Olimpíada. Em Atlanta 1996, quando entrei no refeitório lotado, eu falei: "Meu Deus, que coisa é essa?. Tem comida do mundo inteiro". De repente, lá no fundo, é o Michael Jordan (Nota da reportagem: o astro, que retornara ao basquete no ano anterior, após uma tentativa frustrada no beisebol, estava nos Jogos a convite de um patrocinador, sem fazer parte da equipe americana que ganharia o ouro). O time dos Estados Unidos estava lá, é uma NBA aquilo. Eu falei: "Vou lá". As meninas falaram que eu estava louca. Era aquela máquina de filme, você não sabia como a foto sairia. Eles estavam se servindo, pegando uma massa italiana, uma salada... Eu pedi: "Could you take a picture with me (Você pode tirar uma foto comigo?)?". What (O quê?)? Ele não entendeu meu inglês nordestino. "Picture, picture". Ele, educadamente, botou a bandeja e tirou a foto comigo. Depois que eu fiz isso, o refeitório inteiro foi atrás desses caras. Eles não conseguiram comer, tiveram que tirá-los da Vila Olímpica, ficaram em um hotel. Todo mundo estava com aquele receio, mas como a louca aqui foi falar com eles... São histórias maravilhosas.
Como foi estrear em Jogos Olímpicos, em Atlanta 1996?
— Você chega para competir e sua companheira, Hilma, no auge da carreira, quebra o pé. Quem tem que substituir? Virna. Uma mega responsabilidade, é o mundo te assistindo. O Brasil era uma das melhores seleções do mundo. É uma cobrança. Estreei contra o Quênia, um dos piores times do mundo. Elas não sabiam sacar. Eu me tremia de nervoso. Ainda bem que era um jogo fácil, porque existe essa adrenalina. Depois da terceira cortada, sai aquela tensão. Olimpíada é Olimpíada. A Copa do Mundo de futebol é a nossa Olimpíada. É um sonho. Fui privilegiada. Joguei três Olimpíadas e fui a três como comentarista. Uma delas foi ao lado do Luciano do Valle e, quando as meninas ganham o ouro, ele começou a chorar. Eu o abandonei na transmissão e invadi a quadra. Eu não podia fazer isso, estava ali como comentarista. É tanta emoção! Não sou campeã olímpica, mas sou bicampeã olímpica como comentarista. Vivi todos os lados das Olimpíadas. É um clima maravilhoso. Em Paris 2024 fui como embaixadora.
— Tive a honra de ver a Rebeca ganhar da Simone Biles. A Biles é um fenômeno. Quando eu vi aquela mulher ganhar o ouro no primeiro dia, pela TV, eu pensei: "Para a Rebeca ganhar da Biles, ela tem que tropeçar". Ela é uma pluma. No segundo dia, eu comprei. Meu marido ficou louco, porque paguei uma fortuna no ingresso. Eu queria assistir no melhor lugar, a prova de ginástica é a coisa mais linda de uma Olimpíada. Eu assisti atrás da avó, do avô e do noivo da Biles. Foi uma emoção ver a Rebeca ganhar, a gente chorava. Ela é um fenômeno. A história de vida, não tinha dinheiro, operou o joelho... como o esporte é transformador. Fiz questão que meus filhos vivenciassem isso. Eu não sei quando vou voltar a uma Olimpíada. Foi R$ 30 mil por quatro ingressos. Eu me sacrifiquei porque não sei quando vou voltar. É muito mágico.
Atlanta 1996 ficou marcada pela primeira medalha olímpica do vôlei feminino do Brasil, mas também pela confusão com as cubanas.
— Nossa... Essa Olimpíada de Atlanta 1996 foi muito especial. Em primeiro lugar, pelas dificuldades que enfrentamos. Ganhamos de Cuba de 3 a 0 na chave e, teoricamente, não cruzaríamos com elas, mas elas perderam para a Rússia e a enfrentamos na semifinal. Foi um jogo muito difícil, elas xingavam, provocavam. Hoje eu entendo por que elas faziam isso, era sobrevivência. O Brasil começou a tirar a comida delas. Tudo que elas ganhavam, 90% ia para o governo, 10% para elas. Elas eram gratas ao presidente Fidel Castro, ele ajudava o esporte cubano. Mas, o segundo ou terceiro lugar, era metade, da metade, da metade do prêmio. Hoje sou amiga da Mireya Luis, conversamos sobre isso. Quando perdemos para Cuba, que teve aquela briga no vestiário, foi uma loucura. Foi horrível, a gente não conseguiu dormir. A Filó estava com um galo enorme na cabeça, pegaram a muleta da Hilma para bater nas cubanas e bateram na cabeça da Filó. Foi uma noite horrorosa, ninguém dormiu.
Como viraram a chave para a disputa da medalha de bronze?
— No dia seguinte, indo pegar o ônibus para ir para o jogo, cruzei com meu conterrâneo Oscar Schmidt. Eu estava com a Ana Paula. "Que cara é essa meninas?". Poxa, tomamos porrada literalmente, na bola e na vida real (risos). Aquele briga havia sido por causa da Ana Paula. Ele falou: "Garotas, levantem a cabeça. Eu trocaria todas as medalhas da minha vida por uma medalha olímpica. Vocês não têm noção do que significa uma medalha olímpica. Nunca uma mulher no esporte brasileiro ganhou uma medalha, vocês podem ser as primeiras". Ele falou meu nome, eu nem imaginava que ele me conhecesse. O Oscar era um mito. Passou um filme na minha cabeça, essa mensagem não foi por acaso. Quando chegamos no ginásio, o Bernardinho nos empoderou na preleção, aí falamos da mensagem do Oscar. Aquilo deu um brilho no olhar de cada uma, uma coisa muito forte. O Oscar disse: "Eu não posso me imaginar num pódio, porque o basquete dos Estados Unidos e dos outros países é muito forte. É muito difícil". A gente ganhou a medalha e, quando chegamos no Brasil, não tínhamos noção da repercussão. Parecia que tínhamos ganhado o ouro. Andávamos de carro de bombeiro.
E quando as coisas foram mudando a ponto de o Brasil começar a vencê-las?
— A gente tomava muita porrada de Cuba. O Bernardo e o Zé Inácio, nosso preparador físico, eram visionários. Eles marcaram amistosos em Cuba para ver o que elas estavam fazendo. O Zé ia para a musculação dentro do ginásio ver as cubanas. Elas faziam levantamento olímpico. O crossfit, que hoje é moda, elas já faziam em 1995. Quando voltamos ao Brasil, o Bernardo mudou completamente a nossa parte física. A gente fazia elástico, pesinho pena. Meu amor, começamos a colocar aquelas placonas de musculação. Fomos ficando duras. A gente ia atacar e parecia que a bola não saía direito, os braços travados. Começamos a perceber que melhorou nossa força, nossa impulsão. A gente aprendeu a ganhar de Cuba perdendo de Cuba. Fomos entender o que elas faziam. Nessa época, levávamos peças íntimas, desodorante, sabonete, porque elas passavam necessidade e comprávamos charutos delas para ajudar. A Mireya ama samba e música baiana. Eu levava para ela fita de escola de samba, do Beto Barbosa, do Chiclete com Banana, do Durval Lélys, da Daniela Mercury, do Luiz Caldas. Criamos um vínculo.
E depois azedou...
— E aí veio a rivalidade, ficamos sem nos falar. Chegávamos escoltadas pela polícia nos ginásios, cada seleção de um lado. Não ficávamos no mesmo andar dos hotéis. Utilizávamos o restaurante em horários distintos. Era uma guerra, era pau mesmo. Depois de 1996, quando vieram os Grand Prix, virou uma inimizade. Até 2000 era uma mega rivalidade. E aí Cuba e o Brasil foram se renovando. A nova geração não vivenciou isso. Todos os países queriam contratar as cubanas e, na época, a Itália era o melhor do mundo. O presidente Fidel dizia que as 12 só podiam ir para o mesmo país. Elas foram para a Itália, a maioria casou com europeu e não voltou mais para Cuba. O vôlei feminino de Cuba não joga mais Olimpíada, mas foi a nossa grande referência. Quando eu virei comentarista, a Mireya era chefe de missão de Cuba. Nós nos encontramos na Vila, trocamos telefones e voltamos a ter um vínculo. Eu a convidei para o Carnaval no Rio, a levei na Sapucaí, ela pirou. Ela não imaginava aquilo. Mantivemos o contato, ela virou comentarista nas Olimpíadas do Rio.
— No ano passado, fizemos um talk-show em 12 cidades no interior de São Paulo, contamos as confusões, a rivalidade e ficamos muito amigas. Ela passou 10 dias na minha casa. Estamos montando uma empresa de atletas, ainda estamos desenvolvendo, não posso contar qual é o foco. Ela trabalha na Federação Internacional. Estamos sempre juntas, ela mora na República Dominicana. A gente se fala a cada 15 dias. É uma mulher humilde, batalhadora. Ela tem uma história que, sempre que ela conta, eu choro. Ela foi mãe aos 14 anos, nem sabia que estava grávida. Quando ela foi mãe, a seleção precisava muito dela. Ela deixou a criança com 10 dias de nascimento e foi embora jogar com a seleção. Ficou um tempão fora de casa, quando voltou a filha estava grande. Às vezes ,a gente não tem noção das dificuldades que um atleta passa.
Qual era o sentimento que você tinha em relação à Mireya na época da rivalidade?
— Ah, posso falar um palavrão? Ela era f***. Ela, a (Magaly) Carbajal e aquela (Regla) Torres... Pense em três catimbentas? A Mireya atacava: "Salta filha da putana". Ela atacava onde queria. Bloquear a Mireya era muito difícil, era um fenômeno. Era ágil, habilidosa. A gente tinha muita raiva dela. Até hoje eu não vi nenhuma jogadora do nível daquela mulher. Para mim, está eternizada. Tem a Boscovic, jogadoras muito boas, mulheres enormes, mas fazer o que ela fazia com aquele tamanho e facilidade? Ela bloqueava, sacava, defendia e passava sem fazer esforço. Nesses dias, brincando no Brasil, ela me irritou. É mais velha que eu, não treina mais, e eu toda enferrujada, dura. Ela com o maior controle. Um fenômeno.
Como vocês respondiam às provocações na quadra?
— A Márcia Fu, a Ana Moser e eu éramos mais briguentas. Tinha a turma da calmaria. Fuzinha ia para cima, não engolia sapo, não. "Você me respeita, filha de putana é você". Era pau. A Mireya me contou tudo, porque quando começamos a fazer frente, elas ficaram preocupadas, não só pelo financeiro, mas porque queriam ser melhores que as brasileiras. O treinador delas, Eugenio (George Lafita), colocava titulares x reservas nos treinos para uma provocar a outra. Para, quando encontrar a gente, fazer o mesmo. Somos latinas, o sangue corre pela veia. Uns são mais explosivos, outros menos, mas tem essa competitividade. Era uma guerra. Nosso voleibol brasileiro deve muito a Cuba. Ali foi uma escola para a gente.
O que os brasileiros falam com você sobre as cubanas quando te encontram na rua?
— Aquelas "catimbentas", metidas, chatas... As pessoas criaram um rancor, uma raiva delas, e não é para menos. O que elas fizeram foi muito grave. E elas não estavam nem aí, eram treinadas para nos desestabilizar emocionalmente. Tudo era estratégia. Hoje a gente sabe de tudo isso, mas naquela época era guerra mesmo.
Depois disso, veio um grande trauma, em Atenas 2004. O Brasil vencia a Rússia por 24 a 19 e ficou a um ponto da final olímpica, que não veio. Quais as suas lembranças desse dia?
— A gente entrou naquela Olimpíada com a convicção de que éramos as melhores. Fato. Não tinha nenhuma seleção ali melhor que a do Brasil. Nas outras, a gente sabia que lutaria pelo terceiro lugar. Aquele jogo contra a Rússia foi muito louco, porque quando aconteceu o 24 a 19, que deu aquele barata-voa, que ninguém virava bola, o Zé Roberto pediu tempo. Sabe quando você percebe que ninguém o ouviu? Todo mundo estava tão baratinado que quis resolver por conta própria. Não teve estratégia. Eu estava na saída, fui atacar uma bola, que eu fazia com facilidade, para ela bater (na adversária) e sair. Ela bateu no meu ombro e, como uma das jogadoras experientes do grupo, eu levei a culpa para mim para sempre. Eu não consigo assistir àquele 24 a 19. Aquilo me dói. Aquela Olimpíada eu não consigo admitir ter pedido. Analisando depois, a gente não conseguiu pensar como grupo, cada uma quis resolver sozinha e, em esporte coletivo, não é assim. Emocionalmente, algumas foram se perdendo, perdendo o equilíbrio. O esporte é uma arte que não engana. Quatro anos depois, como comentarista, a vitória do Brasil me aliviou um pouco. Essa derrota foi dura.
Como ficou a sua cabeça depois da derrota?
— Depois da Olimpíada, eu tinha o maior contrato do vôlei feminino no mundo para jogar na Itália. Cheguei lá e me machuquei. Minha cabeça estava muito mal, foi uma deprê mesmo. A sensação era de perder um ente querido, uma coisa profunda essa dor. Fiquei quatro meses tentando me recuperar de uma lesão no joelho e não conseguia. Ficou muito claro para mim que era por causa da minha cabeça. Eu tinha mais de um ano de contrato na Itália e pedi para rescindir para ganhar metade, da metade, da metade do dinheiro. Eu precisava voltar ao Brasil para me reconectar com meus valores, minha família.
Como isso é sentido por quem está dentro da quadra? Porque, antes mesmo do empate em 24 a 24 acontecer, um time vai ficando abalado, e o outro vai acreditando no impossível...
— É muito louco explicar. Você errou uma, mas tem a outra, tem a outra ainda, 24 a 24, vamos fazer 26 a 24. E, quando você vê, saiu pelas suas mãos. Aquele set detonou a nossa equipe. Alguém falava: "vamos, vamos, vamos". Vamos para onde? Tem que ter uma linha. Você olhava no olho de uma e estava aquele olhar perdido. Aquele olhar que não era mais de focada, era de desesperada. Você queria fazer seu melhor, mas não conseguia raciocinar, ter a performance que queria ter. E o emocional vem. Não é só com as mulheres, os homens também. Existem essas oscilações. Foi muito frustrante. Rapaz, vou falar: foi uma das maiores dores da minha vida. Eu não consigo assistir a esse jogo. Eu sabia que éramos as melhores. O Bernardo sempre falou uma frase que levo para a vida: "A gente pode até perder uma partida, mas treinar e se preparar mais que a gente, ninguém vai. Vamos chegar com a convicção que fizemos nosso melhor". Éramos as melhores e deixamos as russas serem as melhores. É muito frustrante. Muito, muito. É louco isso. É inexplicável.
Você acha que cobrança foi muito dura após a derrota?
— Eu acho que cobraram muito da Mari. Ela era uma jogadora muito inexperiente e estava arrebentando. Ficaram questionando... Se eu fosse a levantadora, eu levantaria para ela, a Mari estava virando tudo. Crucificaram muito ela, não merecia aquela cobrança árdua, e sim, a gente, as mais velhas. A gente tinha essa reponsabilidade.
Havia uma pecha de "amarelona" para a seleção...
— Engraçado que aquela geração deu continuidade na outra Olimpíada, né? Saíram algumas peças, como eu e a Fernanda Venturini. Elas foram lá e ganharam, a própria Mari conseguiu se reerguer. Não é fácil.
Alguma palavra ou rótulo incomodava mais de ler ou escutar?
— É o fracasso que doía, saber que não demos nosso melhor. O julgamento vai existir. Sair da partida e falar "deixei a desejar". Eu me preparei tanto para estar ali e não consegui dar meu máximo. Isso é frustrante para qualquer atleta.
Como foi para vocês lá?
— Era um luto. Ninguém falava nada. Uma chorava muito, a outra ficou muda, a outra virava a cara, foi uma cena muito ruim, muito triste. Cada uma tinha uma reação. Eu só chorava. O Zé elogiando, agradecendo o grupo, que tentamos fazer nosso melhor, mas nos frustramos. Era uma coisa altamente fúnebre, inacreditável.
Você fica remoendo os lances no hotel? Pensando no que poderia ter feito de diferente, numa jogada específica que deu errado?
— Ah, sim. Eu não dormia, não comia. A gente perdeu depois pelo emocional, a gente poderia ter ganho a medalha de terceiro lugar. Perdemos porque estávamos mal de cabeça. Olha que eu sou forte para me reinventar, mas aquilo foi muito difícil. Até hoje eu não assisto àquele jogo. Eu até posso chegar no 24, depois desligo a TV. Meu Deus, por uma bola, né? É louco demais. Faço terapia há muitos anos. A gente naquela época não tinha o tal burnout (Síndrome do Esgotamento Profissional), ninguém nem sabia o que era. Eu acho que pós eu tive um burnout. Não só eu, como várias companheiras. Não tinha esse diagnóstico. Eu fui no fundo do poço.
Essa derrota pavimentou o caminho para as medalhas de ouro em Pequim 2008 e Londres 2012?
— Ali foi um grande aprendizado. E o Zé continuou, está lá até hoje. Olha quantas dores ele viveu, alegrias, frustrações, derrotas e vitórias. Ele conseguiu remoldar aquela equipe, fazer com que elas acreditassem de novo, principalmente a Mari. Era uma garota que foi crucificada. Foi um crime o que fizeram com ela.
O que representou para você jogar um Vasco x Flamengo, um clássico dessa dimensão, no Ginásio do Maracanãzinho?
— Vasco e Flamengo era alucinante. Primeiramente, pela rivalidade. Minha história com o Flamengo foi muito louca. No primeiro ano, montamos um time em cima da hora, não tínhamos verba e ficamos em quinto lugar. No segundo ano, o Vasco veio com tudo, contratou uma seleção brasileira. O Eurico Miranda me ofereceu o dobro do que eu ganhava no Flamengo. Você sabe o que é o dobro do meu salário? Era uma aposentadoria para mim. Eu não traio o meu time, eu não saí do Flamengo. Isabel (Salgado) foi, Fabizinha foi, eu não fui. O orçamento do Vasco era quatro vezes maior que o do Flamengo. Eu virei até empresária, ligava: "A gente não tem muito dinheiro, mas você vai amar jogar no Flamengo, morar no Rio". Eu seduzia pelo Manto Sagrado.
Você acha que cobrança foi muito dura após a derrota?
— Eu acho que cobraram muito da Mari. Ela era uma jogadora muito inexperiente e estava arrebentando. Ficaram questionando... Se eu fosse a levantadora, eu levantaria para ela, a Mari estava virando tudo. Crucificaram muito ela, não merecia aquela cobrança árdua, e sim, a gente, as mais velhas. A gente tinha essa reponsabilidade.
Havia uma pecha de "amarelona" para a seleção...
— Engraçado que aquela geração deu continuidade na outra Olimpíada, né? Saíram algumas peças, como eu e a Fernanda Venturini. Elas foram lá e ganharam, a própria Mari conseguiu se reerguer. Não é fácil.
Alguma palavra ou rótulo incomodava mais de ler ou escutar?
— É o fracasso que doía, saber que não demos nosso melhor. O julgamento vai existir. Sair da partida e falar "deixei a desejar". Eu me preparei tanto para estar ali e não consegui dar meu máximo. Isso é frustrante para qualquer atleta.
Como foi para vocês lá?
— Era um luto. Ninguém falava nada. Uma chorava muito, a outra ficou muda, a outra virava a cara, foi uma cena muito ruim, muito triste. Cada uma tinha uma reação. Eu só chorava. O Zé elogiando, agradecendo o grupo, que tentamos fazer nosso melhor, mas nos frustramos. Era uma coisa altamente fúnebre, inacreditável.
Você fica remoendo os lances no hotel? Pensando no que poderia ter feito de diferente, numa jogada específica que deu errado?
— Ah, sim. Eu não dormia, não comia. A gente perdeu depois pelo emocional, a gente poderia ter ganho a medalha de terceiro lugar. Perdemos porque estávamos mal de cabeça. Olha que eu sou forte para me reinventar, mas aquilo foi muito difícil. Até hoje eu não assisto àquele jogo. Eu até posso chegar no 24, depois desligo a TV. Meu Deus, por uma bola, né? É louco demais. Faço terapia há muitos anos. A gente naquela época não tinha o tal burnout (Síndrome do Esgotamento Profissional), ninguém nem sabia o que era. Eu acho que pós eu tive um burnout. Não só eu, como várias companheiras. Não tinha esse diagnóstico. Eu fui no fundo do poço.
Essa derrota pavimentou o caminho para as medalhas de ouro em Pequim 2008 e Londres 2012?
— Ali foi um grande aprendizado. E o Zé continuou, está lá até hoje. Olha quantas dores ele viveu, alegrias, frustrações, derrotas e vitórias. Ele conseguiu remoldar aquela equipe, fazer com que elas acreditassem de novo, principalmente a Mari. Era uma garota que foi crucificada. Foi um crime o que fizeram com ela.
O que representou para você jogar um Vasco x Flamengo, um clássico dessa dimensão, no Ginásio do Maracanãzinho?
— Vasco e Flamengo era alucinante. Primeiramente, pela rivalidade. Minha história com o Flamengo foi muito louca. No primeiro ano, montamos um time em cima da hora, não tínhamos verba e ficamos em quinto lugar. No segundo ano, o Vasco veio com tudo, contratou uma seleção brasileira. O Eurico Miranda me ofereceu o dobro do que eu ganhava no Flamengo. Você sabe o que é o dobro do meu salário? Era uma aposentadoria para mim. Eu não traio o meu time, eu não saí do Flamengo. Isabel (Salgado) foi, Fabizinha foi, eu não fui. O orçamento do Vasco era quatro vezes maior que o do Flamengo. Eu virei até empresária, ligava: "A gente não tem muito dinheiro, mas você vai amar jogar no Flamengo, morar no Rio". Eu seduzia pelo Manto Sagrado.
— Eu ligava para as flamenguistas que eu sabia que gostavam. Montamos um time para ficar em terceiro ou quarto. Quando ganhamos daquele Vasco... Foi um dos dias mais inspirados da minha vida. Eu estava iluminada. Eu peguei a levantadora, a Gisele, pelo pescoço, apertei e falei: "Todas as bolas são para mim, você está ouvindo? Estou muito confiante". Calma, você está me esganando. Quando a gente ganhou, aquele Maracanãzinho lotado, a torcida do Flamengo gritando meu nome. Eu cumprimentei as meninas e fui correndo para a arquibancada para agradecer. Eu saí do ginásio quase nua. Eu dei tênis, meia, joelheira. Saí com a sunga e o top, dei tudo para a torcida. Foi uma emoção muito grande.
Você não ficou balançada com a proposta? O dobro é muita coisa...
— Não, porque era uma paixão muito grande. E olha que dinheiro é importante, viu? Mas eu não sou uma pessoa materialista. Eu sou generosa, faço trabalhos voluntários, eu não faço conta. Quanto mais a gente ajuda, Deus dá em dobro. E depois eu conquistei de outra forma. E, se não tivesse conquistado, tudo bem. Dinheiro não é tudo. A vida é feita de dignidade e valores. A gente vive em um mundo meio promíscuo em relação a esses valores. As pessoas estão vivendo nesse mundo virtual, vivendo uma mentira e esquecendo do que tem dentro delas. A gente não muda as pessoas, mas através de exemplos, a gente arrasta multidões. Parem de julgar, de apontar. É uma guerra de direita, esquerda, time de futebol, religião. Futebol, política e religião não se discute.
— Cada um tem sua forma de ver e pensar, vamos pra frente. Um novo dia vai raiar, como diz o Xande de Pilares. As pessoas estão esquecendo um pouco isso, me preocupo muito. Sou muito religiosa, vou à missa, rezo muito e só agradeço. Eu peço para as pessoas terem o olhar para o próximo. A cada dia aumenta o desemprego. Sou nordestina, sei o que é falta de água, sei o que é seca, o que é não ter um prato de comida. Meus pais nasceram em lugares muito simples, uma miséria. Somos privilegiados, temos muito e não sabemos agradecer. Problema tem quem está no hospital morrendo, quem não tem um prato de comida. O resto não é problema.
Passou alguma dificuldade no Rio de Janeiro?
— Eu fui assaltada no Rio de janeiro quando eu jogava vôlei de praia. Estava saindo do treino, na Rua Redentor. Eu tinha uma necessaire com óculos, protetor solar e dois reais do coco. O cara botou a arma na minha cabeça, levou a necessaire e um celular tijolão. No dia seguinte, comentei com o seu Jebé, que montava a nossa rede. Uma semana depois, o assaltante, quando soube que era eu, pediu desculpas, falou que era flamenguista roxo. Eu ainda mandei uma camisa do Flamengo para ele.
Você não ficou balançada com a proposta? O dobro é muita coisa...
— Não, porque era uma paixão muito grande. E olha que dinheiro é importante, viu? Mas eu não sou uma pessoa materialista. Eu sou generosa, faço trabalhos voluntários, eu não faço conta. Quanto mais a gente ajuda, Deus dá em dobro. E depois eu conquistei de outra forma. E, se não tivesse conquistado, tudo bem. Dinheiro não é tudo. A vida é feita de dignidade e valores. A gente vive em um mundo meio promíscuo em relação a esses valores. As pessoas estão vivendo nesse mundo virtual, vivendo uma mentira e esquecendo do que tem dentro delas. A gente não muda as pessoas, mas através de exemplos, a gente arrasta multidões. Parem de julgar, de apontar. É uma guerra de direita, esquerda, time de futebol, religião. Futebol, política e religião não se discute.
— Cada um tem sua forma de ver e pensar, vamos pra frente. Um novo dia vai raiar, como diz o Xande de Pilares. As pessoas estão esquecendo um pouco isso, me preocupo muito. Sou muito religiosa, vou à missa, rezo muito e só agradeço. Eu peço para as pessoas terem o olhar para o próximo. A cada dia aumenta o desemprego. Sou nordestina, sei o que é falta de água, sei o que é seca, o que é não ter um prato de comida. Meus pais nasceram em lugares muito simples, uma miséria. Somos privilegiados, temos muito e não sabemos agradecer. Problema tem quem está no hospital morrendo, quem não tem um prato de comida. O resto não é problema.
Passou alguma dificuldade no Rio de Janeiro?
— Eu fui assaltada no Rio de janeiro quando eu jogava vôlei de praia. Estava saindo do treino, na Rua Redentor. Eu tinha uma necessaire com óculos, protetor solar e dois reais do coco. O cara botou a arma na minha cabeça, levou a necessaire e um celular tijolão. No dia seguinte, comentei com o seu Jebé, que montava a nossa rede. Uma semana depois, o assaltante, quando soube que era eu, pediu desculpas, falou que era flamenguista roxo. Eu ainda mandei uma camisa do Flamengo para ele.
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